Data: 28 de setembro de 2000
Assunto: Revolução Sexual sobre Rodas
[C] Pessoal,
[C] Entrevistei um psicólogo paraplégico nesta semana. O nome dele é Fabiano Puhlmann e ele é especialista em Sexualidade. Ele participou do Erótica do Teleton, não sei se alguém viu… Na próxima quarta-feira (4 de outubro) ele estará lançando o livro. A Revolução Sexual Sobre Rodas – conquistando o afeto e a autonomia. A conversa com ele foi muito boa. Já comprei o livro, mas ainda não li. Assim que tiver mais dados, informo vocês
Simone
O livro do Fabiano é sobre a sexualidade dos deficientes em geral ou só a dos portadores de lesão medular? Pergunto porque quando não pensam que os deficientes são assexuados, geralmente identificam a questão da sexualidade dessa gente com a dos tetra e paraplégicos – de vez em quando me perguntam se não tenho dificuldade de ereção, mas a paralisia cerebral não causa problema algum neste aspecto. Me lembro de um programa da Silvia Popovic pretensamente destinado a discutir tal questão ao qual só foram convidados paraplégicos, um dos quais era simplesmente lindo e faria qualquer mulher se derreter por ele – me senti totalmente alheio a esse programa; pois enquanto alguns paraplégicos podem atender aos critérios de beleza da sociedade, isso é praticamente impossível para quem tem PC, ortogeneseimperfecta, etc. Outra recordação que tenho é um e-mail de Suely Shatow – uma PC formada em filosofia e com mestrado em psicologia social com uma tese, transformada em livro, sobre identidade social dos PCs –, indignada com essa identificação errônea, que faz nós dois nos sentimos discriminados duplamente.
No ano passado, num seminário perguntei o motivo dessa falsa identificação a João Ribas – paraplégico e antropólogo –, que disse que o discurso sobre a sexualidade dos portadores de lesão medular está associado com o medo da impotência – o meu amigo Dr. Jorge Márcio, que estava comigo, brincou dizendo “vivemos numa sociedade falocratica”–, enquanto a sexualidade dos outros deficientes é diferentes demais dos padrões sociais. Não sei se concordo com essa explicação, Jorge acha que Ribas não soube responder e eu gostaria que alguém me desse algum motivo plausível para essa falsa identificação.
Data: 10 de outubro de 2000
Assunto: Revolução Sexual sobre Rodas
Verônica
[C] Sim, era o lugar porque nessa lista, onde participam sexólogos de língua espanhola, tem sexólogos especialistas nas deficiências e estamos falando disso agora¨ Para eles e para mim, o que você está falando é conjuntura, não estrutura
A sexologia estuda o sexo do ponto de vista orgânico, fisiológico, enquanto a falsa identificação que estamos discutindo é um fenômeno psicossocial ou antropológico e não é certo que sexólogos se preocupem em estudá-la. Qualquer que seja a ciência que deva estudar tal fenômeno, como disse no último e-mail duvido muito que, mesmo nos EUA, já se tenham feito pesquisas científicas a esse respeito – afinal, quem se interessaria em financiar esse tipo de pesquisa, uma vez que se trata de minoria tão pequena e sem poder? Como superar as dificuldades metodológicas para captar uma coisa tão sutil e que não pode ser reproduzida em laboratório – ao contrário das coisas pesquisadas pela sexologia –, a começar pelo fato das pessoas mentirem muito quando aparece um pesquisador perguntando sobre sexo? Por fim, “especialistas”– como os sexólogos – também têm preconceitos: por exemplo, ao menos no Brasil muitos médicos acham que PC é uma doença, a maioria dos pedagogos especializados em educação especial pensa que PC é sinônimo de deficiência mental, etc. Aliás, nessa lista espanhola há algum sexólogo que já tenha lidado com PCs?
Essa falsa identificação é tão sutil que só comecei a percebê-la na minha terapia, aos 30 anos, quando minha psicóloga falava, tentando (sem sucesso) me fazer ser menos cético quanto à possibilidade de ter um relacionamento com uma mulher, que “funciono” enquanto homem como se este fosse o único problema que um deficiente pudesse ter no sexo, e fiquei inteiramente ciente apenas quatro anos depois, ao ler um site, que dizia que os homens que tem deficiência sofrem por sentirem-se “sem poder” e as mulheres, por não corresponder aos padrões estéticos; ora, pelo que sei os homens que têm paralisia cerebral não se sentem “sem poder” no que tange à sexualidade – a não ser num sentido totalmente irrelevante –, mas sofrem demais por não corresponder aos padrões de beleza, o que a página diz ser um problema feminino!
Se me faltam pesquisas científicas para amparar o que digo, me sobram evidências empíricas para as quais você insiste em fechar os olhos – e você teve acesso direto a uma dessas evidências, a reportagem da Folha On-Line. Aqui no Brasil essa falsa identificação é um fato inegável, embora não comprovado cientificamente. A única dúvida que pode haver se esta é uma realidade exclusivamente brasileira ou também ocorre em outros países; neste ponto, além de conversar com pessoas de outras deficiências, seria bom você observar como a mídia argentina trata o assunto e o há que na Internet a esse respeito
Data: 11 de novembro de 2000
Assunto: Comentando “Revolução Sexual sobre Rodas”
Oi a Todos
Na penúltima semana, recebi o livro “Revolução Sexual sobre Rodas” que a Moni gentilmente me enviou pelo correio. Para começar, estranhamente o Fabiano Puhlmann se limita a discutir a sexualidade de pessoas que adquirem uma deficiência após viverem normalmente durante um bom tempo – me pergunto se isso não é uma forma sutil da falsa identificação que discutimos aqui. Ora, nascer com uma deficiência ou adquiri-la com pouca idade tem conseqüências importantes nesse caso: a família nunca viu o deficiente com uma namorada, paquerando, tendo relações sexuais, etc, e assim a tendência a vê-lo como assexuado é mais forte; quando a família tem alguma religiosidade, pode imaginar que o deficiente é “puro”, um anjo, e que deixá-lo fazer sexo é um “pecado”; se não, a família pode tentar fugir da questão imaginando que se nunca experimentar o gosto da maçã, o deficiente nunca vai desejá-la; e ele não conta com uma experiência prévia à deficiência que possa reelaborar e ajudá-lo a lidar com sua sexualidade e a dos outros – ele tem de partir da estaca zero!
Logo no início do livro, Puhlmann diz que o amor é coisa dos deuses, no sentido de ser algo não-racional e muitas vezes irracional. Não gostei dessa metáfora por dar a entender que o amor cai do céu (ou do Olimpo) – em vez de ter causas humanas –, paira acima de tudo e de todos e é uma força irresistível, capaz de superar todos os obstáculos *sempre* – de fato, acho que implicitamente o livro assume essa visão romântica. Eu preferia que ele lembrasse que a racionalidade não é a única característica que define o ser humano e dissesse que o amor é coisa humana e, como tal, capaz de tornar possível o que parecia impossível, quebrar normas e preconceitos, transformar pessoas, mas também é sujeito a mil contingências, influências e limites – esse sentimento pode superar os maiores obstáculos, mas não é sempre que isso acontece e, nesse caso, não deixa de ser amor.
Um dos casos contados por Puhlmann é o de um PC que se apaixona por outra deficiente e a relação dos dois é impedida pela família da moça. Puhlmann menciona o preconceito que os PCs sofrem de serem considerados deficientes mentais e, como na entrevista que concedeu a Simone, até dar a entender que são mais discriminados que os outros deficientes, com o que não sei se concordo. Porém, ele é superficial sobre sexualidade do PC – a Simone ou outra pessoa deveria mandá-lo visitar meu site! Não há menção alguma a portadores de ortogeneseimperfecta e distrofia muscular, há pouca a amputados e muita ênfase sobre problemas de ereção, sensibilidade tátil e orgasmo – será mesmo que ele não identifica a sexualidade dos deficientes físicos com a dos tetra e paraplégicos?
O tratamento que Puhlmann dá à prostituição é canhestro, encarando-a apenas como um meio do deficiente reiniciar sua vida sexual. Ora, ele deve saber que muitos homens deficientes recorrem à prostituição sistematicamente, porque a preferem à masturbação ou não podem praticar esta, e não querem ficar sem vida sexual. Pagar para fazer sexo gera problemas que deveriam ser abordados por ele, já que se trata de uma situação freqüente.
Outra lacuna do livro é omissão das dificuldades de fala, já que a aproximação do outro, paquera, sedução e mesmo o sexo dependem muito da comunicação.
Gostei do modo como Puhlmann trata os acessórios sexuais, o egocentrismo que muitos deficientes superprotegidos apresentam, a questão da beleza, etc. De 0 a 10, eu daria nota 7 ao livro.
Como esse livro foi muito elogiado nesta lista, me senti embaraçado por julgá-lo tão severamente, como se tivesse mania de botar defeito em tudo, afinal foi o primeiro no Brasil a abordar a sexualidade do deficiente físico. Mas não se melhora nada apenas rasgando seda e, como a Moni disse certa vez, sou um crítico de primeira.