Nasci num hospital tão precário, em 1964, que o parto da minha mãe foi feito por um psiquiatra e, como resultado de um erro médico e da inexperiência dos meus pais, me faltou oxigênio na hora do nascimento e fiquei com uma lesão cerebral, o que só perceberam após voltarem a Fortaleza, quando foram alertados por uma cunhada da minha mãe, que notou que meu desenvolvimento motor estava aquém do normal. Devido a essa lesão me falta coordenação motora para andar, comer, falar, etc., sem ajuda, embora seja mental e psicologicamente normal, fato que a maioria das pessoas tem dificuldade de compreender – em geral, o mínimo que imaginam é que tenho algum problema de percepção ou uma ingenuidade elefantina. Por não poder andar sozinho, em casa me locomovo engatinhando, às vezes com os joelhos e mãos feridos e/ou doloridos; não consigo levar um garfo de comida à boca, preciso que alguém me alimente e até minha deglutição é complicada; sentar no vaso sanitário por minha conta é me arriscar a levar uma queda e morrer de traumatismo craniano; e a paralisia cerebral é uma deficiência indisfarçável e, quando entro em qualquer lugar público, os olhares, o preconceito de ser um débil mental, um monstrinho ou um ET e a discriminação são imediatos.

Minha paralisia cerebral foi diagnosticada aos seis meses de idade e o primeiro neurologista a quem meus pais me levaram disse que viveria como um vegetal, deitado numa cama, não recomendou tratamento algum e os aconselhou a cuidarem dos filhos que viriam depois. Obviamente, meus pais entraram em desespero até que uma tia minha os orientou a procurar outro médico, que falou que as coisas não eram tão determinadas assim, havia recursos que poderiam melhorar minha condição e que Recife oferecia mais condições de tratamento do que Fortaleza – meus pais são cearenses e acabaram vindo mesmo para cá, porque meu pai era militar e foi o mais próximo do Ceará que conseguiu ficar.

Quando entrei na primeira clínica de reabilitação, uma psicóloga me aplicou testes de inteligência, obtendo resultados acima da média e, sem acreditar que uma criança que não podia explorar o mundo à volta pudesse alcançar tal desempenho, fez testes destinados a crianças maiores, com resultados semelhantes. Essa clínica contava com a melhor especialista em Educação Especial do Recife, mas esta não conseguiu muita coisa comigo porque decidiu trabalhar minha coordenação motora, já que pensava que, se não pudesse escrever, eu não poderia ser alfabetizado. Ainda assim, ela orientou meus pais a afixarem cartazes grandes, com letras de fôrma, vermelhas, na cama, geladeira, fogão, etc., com os nomes desses objetos. Isso no contexto de um extenuante esforço de estimulação precoce e fisioterápico feito em casa, que frequentemente levava minha mãe à beira da estafa; de outro lado, meu pai sempre procurou criar dispositivos para corrigir minha postura corporal, facilitar minha comunicação e me tornar menos dependente.

No fim da década de 60, me transferi para outra clínica criada por um grupo de profissionais que trouxeram novas técnicas de tratamento para o Recife e uma pedagoga dessa clínica conseguiu me alfabetizar em três meses, inclusive graças ao grande esforço que minha mãe fez nesse sentido. Isso foi decisivo, não sei como seria minha vida se não tivesse encontrado essa pedagoga naquela época, pois mesmo hoje tomo conhecimento de pessoas com paralisia cerebral com problemas de fala que são tomados como deficientes mentais devido à falta de meios de expressão e comunicação, e quase todos os que disponho são baseados na alfabetização.

Essa pedagoga diz que se preocupou com o fato de eu estar só absorvendo conhecimento sem poder expressá-lo e teve a idéia de pedir que meu pai fizesse letras de madeira, de uns dez centímetros de tamanho, de forma a me permitir construir frases numa superfície plana – geralmente o chão –, o que foi o primeiro meio de comunicação mais elaborado que ganhei.

Estudei nessa clínica mais ou menos até a quarta série. Em meados dos anos 70, essa clínica mudou de dono, deteriorou-se, saí de lá e essa pedagoga tentou me colocar em muitos colégios da cidade, mas nenhum me aceitou – na época, não havia qualquer legislação contra discriminação. Meu pai pagou uma professora particular para mim durante dois anos, até que pai ficou sem recursos para isso – quando a situação financeira dele melhorou, não tivemos estímulo para retomar meus estudos.

Devido à impossibilidade de falar, me comunicar sempre foi muito difícil, o que me causa inúmeros transtornos e alimenta o preconceito de que quem tem paralisia cerebral é necessariamente deficiente mental. Uma forma de me comunicar era alguém soletrar o alfabeto para eu formar palavras letra por letra. Em meados da década de 70, li numa revista uma reportagem sobre uma pessoa com deficiência que usava uma máquina de escrever elétrica datilografando com os dedos dos pés, justamente a parte do corpo cujos movimentos mais controlo, e passei anos querendo uma máquina dessas até que, em 1980, um tio me deu uma casa em Fortaleza cujo aluguel permitiu comprá-la e me corresponder com outras pessoas. Nada disso me possibilitava conversar até que, em 1988, por acaso assisti a um filme sobre uma moça com paralisia cerebral, ”Gaby: uma História Verdadeira”, que usava uma prancha de madeira com letras e números para se comunicar, os quais apontava com os pés, idéia que copiei imediatamente – foi um expediente simples, mas melhorou demais minha comunicação.

Uma forma de me comunicar era alguém soletrar o alfabeto para eu formar palavras letra por letra. Em meados da década de 70, li numa revista uma reportagem sobre uma pessoa com deficiência que usava uma máquina de escrever elétrica datilografando com os dedos dos pés, justamente a parte do corpo cujos movimentos mais controlo, e passei anos querendo uma máquina dessas até que, em 1980, um tio me deu uma casa em Fortaleza cujo aluguel permitiu comprá-la e me corresponder com outras pessoas. Nada disso me possibilitava conversar até que, em 1988, por acaso assisti a um filme sobre uma moça com paralisia cerebral, ”Gaby: uma História Verdadeira”, que usava uma prancha de madeira com letras e números para se comunicar, os quais apontava com os pés, idéia que copiei imediatamente – foi um expediente simples, mas melhorou demais minha comunicação.

Porém, usar uma prancha alfanumérica para me comunicar implica em várias limitações, pois algumas pessoas têm dificuldade de entender o que digo dessa forma, por pouca escolarização, falta de hábito, habilidade, vontade, estar com raiva de mim, etc, além de ser difícil conversar com dois ou mais interlocutores ao mesmo tempo. Assim, no início da década passei a querer trocá-la por um tablet com um sintetizador de voz.

Em 2012, encontrei o Livox, cujo desenvolvedor é de Recife – hoje mora nos EUA – e já conhecia meu site por ter uma filha com PC, e comprei um tablet de 10”, o maior disponível então. Porém, com esse tamanho de tela e meu grau descoordenação motora, só era vantajoso usá-lo para me comunicar com gente que não me conhecia. Dois anos depois, adquiri um tablet de 12.2” e instalei um aplicativo de teclado que ocupa uma parte maior da tela, o que não eliminou a dificuldade de uso, mas me permitiu conversar com as filhas da minha esposa, falar com ela enquanto está fazendo outra coisa e agora com nossa filha.

Fugir do tédio, ocupar a cabeça com alguma coisa, qualquer coisa, sempre foi uma necessidade para mim, até para não pirar. Assim, comecei a ler os livros que meu pai tinha, que eram basicamente sobre guerra e política internacional, o que fez me interessar por Economia, que, de fato, é a minha vocação profissional. Nesta área usa-se muita matemática, matéria que sempre foi a minha favorita, e resolvi estudá-la sozinho do ponto em que a havia deixado, na sexta série, até o nível de graduação em Economia, o que inclui coisas como equações diferenciais. A grande dificuldade que encontrei foi traduzir a simbologia matemática de modo que pudesse ser escrita no teclado alfanumérico da máquina de escrever, o que hoje me parece muito ingrato com toda facilidade de escrever expressões matemáticas, gráficos e figuras geométricas no computador.

Em 1993, comecei uma psicoterapia devido a uma situação familiar difícil, o que me deu forças para tentar me tornar uma pessoa produtiva. Logo se tornou evidente que não poderia trabalhar sem ter um computador, o que era um sonho que acalentava há muito tempo tanto por gostar de tecnologia e ciência – e, portanto, estar acompanhando atentamente a revolução que a informática estava causando – quanto por saber que iria melhorar minha vida em muitos aspectos. Como nem eu nem minha família tínhamos recursos para comprar um computador, tratei de arranjar um jeito de ganhá-lo e, após inúmeras tentativas frustradas, uma congregação religiosa me doou o dinheiro necessário para adquirir um. Em seguida, um amigo que me foi apresentado por aquela pedagoga e que era diretor da Empresa de Processamento da Prefeitura do Recife abriu, nesta, uma conta de acesso à Internet.

Quando o computador chegou, sequer sabia entrar no Windows e tive de aprender tudo na base da tentativa e erro e consultando amigos, sobretudo por telefone ou e-mail. A posição em que utilizo o computador é sentado na cama, fixando o corpo com os braços – que ficam voltados para trás –, usando um dos pés como apoio e o outro para usar o teclado, que fica no chão. Nessa posição, tinha de fazer malabarismo quando precisava dar comandos que envolviam duas ou mais teclas – tinha de me apoiar nos calcanhares para deixar os dedos dos pés livres para segurar duas ou mais teclas simultaneamente – e raramente acertava para usar o mouse com o pé e, devido à falta de coordenação motora, era impossível com a mão. Tais problemas foram resolvidos quando conheci, por e-mail, um estudante de informática, que encontrou um programa que possibilitava a utilização das teclas de comando apenas com toques e simulava o mouse com a parte numérica do teclado – posteriormente, esse programa tornou-se parte das Opções de Acessibilidade do Windows.

No fim de 1996, a empresa desse estudante de informática começou a oferecer cursos virtuais pela Internet e o primeiro foi sobre HTML, do qual participei. Com esse conhecimento, publiquei este site em janeiro do ano seguinte, sem esperar muita repercussão. Porém, tal site foi o segundo que foi feito por uma pessoa com deficiência no Brasil, o que chamou a atenção da imprensa local e nacional. Além do mais, apesar de a Internet ter gente de todo tipo, como nazistas, racistas, etc., até agora ninguém que leu este site ou uma mensagem que escrevi duvidou da minha capacidade mental, ao contrário do que acontece noutros espaços. E ele me trouxe muitos amigos e até namoradas, embora só haja tido contato pessoal e sexual com seis delas e só três desses namoros é que foram bons para mim (o último acabou em casamento), o que me deixava desolado – por motivos explicados noutro texto, infelizmente ou por sorte a Internet é o único espaço no qual desperto o interesse do sexo oposto; de qualquer forma, gostava de brincar que este site é tão bom que seduzia mulheres!

Infelizmente, é muito difícil transpor meus namoros da Internet para o mundo não-virtual, porque a grande maioria das mulheres que se interessam por mim mora longe de Recife, onde eu residia, e a cabeça das nordestinas é muito estreita para terem tal interesse e namorarem comigo – se morasse no Sul ou no Sudeste, especialmente São Paulo, teria me casado muito antes. Essa janela de oportunidade para namorar acabou no fim dos anos 2000, com a compartimentação da Internet em redes sociais e aplicativos de dispositivos móveis, e após completar 50 anos achei que mais nada de muito diferente me aconteceria e que terminaria meus dias morando com um irmão.
Em torno da virada do milênio, numa lista de discussão sobre deficiência fiz amizade com uma advogada de Curitiba, Silvia Regina, durante cerca de um ano conversamos pelo ICQ – o avô do WhatsApp –, suspeitava que tinha atração por mim, mas, como não consigo tomar a iniciativa com mulheres que não demonstrem um claro interesse por mim, não soube o que fazer. Pior, disse algumas coisas – como duvidar que fosse capaz de lidar com minhas limitações – que a fizeram pensar que não poderia me interessar por ela, se afastar, encontrar o homem que se tornou seu primeiro marido e concluí que aquela suspeita era infundada. No fim de 2014, ela me adicionou no Facebook sem saber direito porquê, logo aquela atração voltou à tona, dessa vez de modo cristalino, não repeti o mesmo erro e, nos meses seguintes, percebi que tem tudo que queria numa mulher. Ao ver que encontrei a mulher com que sonhava num momento da minha vida em que nada mais esperava, a surpresa foi tão grande que fiquei até assustado.

Todas as namoradas anteriores tinham ido me encontrar em Recife, mas ela não podia se ausentar muito tempo de Curitiba por ter duas filhas pequenas e, pela primeira vez, fui ao encontro de uma mulher noutra cidade (acompanhado do meu irmão na ida) em março de 2015. Um mês depois, resolvemos morar juntos em Curitiba já em julho, decisão que foi assustadora, a mais difícil da minha vida, pois ia deixar tudo que tinha em Recife para viver numa cidade em que não conhecia ninguém, com uma mulher que havia acabado de conhecer, com a qual brigaria, sendo fisicamente dependente, sem trabalhar, com renda baixa, etc – a transformação na vida dela não foi menos dramática. No início de novembro, soubemos que ela está grávida e nossa filha nasceu em junho de 2016. Em menos de dois anos, minha vida virou de cabeça para baixo!

Quando me mobilizei para tentar trabalhar, a idéia inicial era prestar algum serviço como economista junto com um amigo que exerce esta profissão, mas o que acabei fazendo foi cartões de visita, algumas logomarcas e folhas de pagamento, impressos e digitação de textos, em sociedade com uma irmã minha, serviços cuja banalidade e baixa remuneração me desestimulavam bastante – em todo caso, ser de algum modo produtivo não é nada trivial para uma pessoa com deficiência, especialmente num país não desenvolvido.

Em 1997, a irmã que era minha sócia passou a administrar uma loja de roupas e gradualmente deixou de trabalhar comigo, o que reduziu muito as atividades que posso fazer. Porém, no ano seguinte o coordenador de uma organização não-governamental, a AJA (Associação do Jovem Aprendiz), que oferece cursos profissionalizantes gratuitos a pessoas com deficiência, sediada em Brasília, leu meu site, enviou uma mensagem dizendo que talvez pudesse me arranjar algum trabalho, respondi que isso era o que mais precisava, ele me pediu para fazer uma proposta para fazer a página dela – esse foi o primeiro trabalho grande que fiz sem minha irmã. Desde então, tenho dado algumas palestras, feito alguns sites, trabalhos para estudantes universitários e outros “bicos”, de forma esporádica. Como não falo, tenho pouca coordenação nas mãos e, portanto, demoro para fazer a maioria das tarefas, além de não ter estudo formal, não tenho condições de aproveitar as poucas oportunidades de emprego que o mercado oferece para pessoas com deficiência. Assim, faz muitos anos que não trabalho, mas ao menos consegui produzir alguma coisa. Atualmente mantenho o blog patrocinado Cérebro Pensante.

Este site e as reportagens que gerou me tornaram relativamente conhecido, muita gente me considera um vencedor, um herói, mas não gosto dessa imagem porque acho que minha reação às limitações físicas é uma mera questão de sobrevivência – certamente há algo de extraordinário nessa reação, mas não muito. Todo mundo tenta instintivamente compensar suas limitações, embora as pessoas se surpreendam com os resultados dessa atitude em quem tem deficiência. Prefiro que me encarem como um lutador, um ser humano que se viu na contingência de ter que enfrentar problemas maiores do que os normais para sonhar e ter alegria de viver.

Ronaldo Correia Júnior