Imagem de Super-Homem

Data: 3 de junho de 2002
Assunto: Uma Breve História do Tempo
Contexto: a Introdução do livro “Uma Breve História do Tempo” de Stephen Hawking – disponível na Internet e omitida para encurtar a mensagem – foi postada na Vital e o Amauri repetiu a falsa imagem que a mídia difunde sobre esse cientista.

[C] Oi Lista

[C] Esse cara é deficiente, ele é o melhor físico da atualidade…

Amauri

Quem conhece um pouco de física moderna – li o livro já há alguns anos – sabe que Hawking é um grande físico, mas não o melhor de hoje e a mídia o trata assim devido ao erro de ver qualquer deficiente que conquista alguma coisa como um super-homem. Não sei explicar direito por que, mas isso me incomoda profundamente, talvez por quase sempre envolver uma percepção distorcida, uma inversão, e não uma supressão do preconceito e, como a imagem de anjinho, é um modo sutil de negar nossa humanidade. Aliás, o Super-Homem é um ET nascido no planeta Cripton!

Data: 3 de junho de 2002
Assunto: Uma Breve História do Tempo

[C] Amauri

[C] Eu diria, esse cara é melhor físico da atualidade, mesmo sendo um deficiente…. (entendeu a inversão? Ser ou não ser um deficiente para uma sumidade como ele… não importa! Ele está aqui entre nós… e sabe, como um gênio, que isso vale a pena! Com certeza sua alma não é pequena!) Valeu …muito legal seu auto didatismo! Um show.

Rozimar

A fama de Stephen Hawking decorre de ele ser um grande físico e deficiente; se ele fosse mesmo o maior físico de hoje mas não deficiente, a mídia pouco ou nada falaria dele a não ser que ele realmente revolucionasse a ciência – a principal contribuição dele (que é muito difícil de ser testada) é inovadora, mas não rompe nenhum paradigma atual.

Data: 4 de junho de 2002
Assunto: Stephen W. Hawking

Vera

[C] Olha, pessoal….Devo esclarecer sobre o assunto em questão, porque estivemos no domingo (Amauri, Rô, Lênia e eu) discutindo “big-bang’s”, “buracos negros”, e etc…citamos Hawking não por ser portador de deficiências, mas pela pesquisa pioneira sobre o surgimento do universo. Aliás, um dos poucos físicos que fala em linguagem que os leigos compreendem

Não são tão poucos assim, sobretudo após o fim da Guerra Fria, que fez a verba de pesquisa ser desviada da física para a biologia, o que levou os físicos a sentirem necessidade de explicar suas pesquisas à opinião pública.

[C] Hawking reviu as grandes teorias, como a da relatividade, da mecânica quântica, e tenta reunir as duas teorias numa única teoria quântica da gravidade, o que pode vir a solucionar mistérios ainda insolúveis…

Desde a década de 70, todos os grandes físicos estão nessa trilha e a principal contribuição de Hawking foi aplicar a física quântica aos buracos negros e concluir que emitem partículas, não sendo exatamente negros – se sinais dessas partículas fossem detectados, no ano seguinte ele ganharia o Nobel. Na década de 90, um número crescente de físicos adotaram a teoria das supercordas como caminho para unir a Relatividade com a física quântica e Hawking discorda desse caminho – se tal teoria estiver certa, hoje ele está num beco sem saída teórico.

[C] Não entrou em questão a sua moléstia degenerativa, mas o fato de ser considerado “o mais brilhante físico teórico desde Einstein” (juro que não são palavras minhas).

Você deve ter visto tal declaração num jornal, revista ou televisão e a fonte deve haver sido um cientista que tem ou teve uma convivência pessoal com Hawking – acertei? Livros de físicos para leigos são uma de minhas leituras preferidas e não vejo tal referência a ele em autores que conhecem (impessoalmente) apenas o trabalho dele. Físicos também são gente de carne e osso e quando se estar na presença de alguém que, além de ter uma personalidade marcante, combina uma deficiência (de qualquer tipo) com um grande intelecto, geralmente se superdimensiona este último – o digo por experiência própria

Data: 4 de junho de 2002
Assunto: Imagem de Super-Homem

[C] Oi Ronaldo

[C] Espero que não tenha quebrado sua integridade, aliás o Sr está com muitos complexos, isso é coisa de adolescente. O deficiente é tratado assim por culpa do mesmo, não mais do que isso, me perturba quando uma pessoa descarrega seus complexos encima de algo. Hawking é o melhor sim, teve essa e muitos outras teorias, poderia ter cruzado os braços, largado os estudos e deixado de lado toda essa teoria, mas não!!! Ele alcançou o que acreditava, tem uma família que o ama, e tem uma vida normal, como eu e você. Rony, procure um analista porque sinto que há uma magoa muito grande dentro de você, isso lhe fará mal no futuro

Você disse isso porque pouco ou nada sabe da física atual e, portanto, vai na onda da mídia; se você ler qualquer obra de divulgação que não do próprio Hawking – p. ex.,”Universo Elegante” de Brian Grene –, você verá que ele pouco citado, nunca como o maior físico de hoje e sempre com referência à cosmologia e aos buracos negros – em que ele inovou bastante, embora sua teoria ainda não tenha sido testada (o que ele mesmo diz no livro) nem rompa com o atual paradigma; note que eu não disse que ele não é um grande cientista e conseguiu grandes conquistas profissionais e pessoais, e sim que não é maior físico de hoje e que a mídia o trata assim devido a um preconceito invertido da sociedade – e ir nessa onda é desconhecimento de sua parte. Aliás, Hawking se separou da primeira esposa e dizem que foi porque é um grande namorador e tinha casos com as enfermeiras dele – de fato, ele casou de novo com uma delas.

Assim, não tenho complexo algum, e sim mais conhecimento da ciência e senso crítico do que você. Como acontece com algumas pessoas que estão ou já passaram na Vital – por exemplo, o MAQ, que até já escreveu a respeito –, muitas vezes sou visto como super-homem, herói e coisas desse tipo, inclusive pela mídia, que já fez umas quinze matérias sobre mim, sendo até comparado ao próprio Hawking (aconteceu hoje, numa palestra que dei), comparação que acho descabida porque as realizações dele são mil vezes maiores; existe até um mito grego, o de Hefeso, que fala dessa imagem do deficiente vencedor como super-homem. Quando passei a ser visto assim, comecei a me incomodar, mas só consegui expressa isso em palavras ao ler um depoimento de Suely Shatow.

Suely tem PC, formou-se em filosofia e fez mestrado em psicologia social com uma tese sobre identidade social do PC, transformada no livro “Paralisado Cerebral: Identidade na Exclusão”; tanto o depoimento quanto o livro tratam dessa imagem. Agora, se você não conhece ciência o suficiente para ter uma idéia correta da obra de Hawking, vai na onda da mídia e insiste em ver Hawking como o maior físico de hoje, o problema é seu e talvez o motivo seja que você mesmo se considere um super-homem por conhecer filosofia. Da minha parte, tenho uma consciência demasiado aguda de meus defeitos, falhas, fragilidades, etc, para concordar que essa imagem seja aplicada a mim e outros deficientes.

Data: 5 de junho de 2002
Assunto: Uma Breve História do Tempo

[C] Oi Ronaldo, boa noite!

[C] Você está dizendo que o Pelé não seria tão famoso se fosse branco??? Pode ser até, amigo, que a propaganda de sua personalidade seja um pouco valorizada pelo fato de ser deficiente, mas com os feitos que ele tem não existe forma de não ser famoso. No meio acadêmico, se você perguntar se ele é deficiente ou não… Bem, o ignorante por aqui nunca soube que o sujeitinho era deficiente… Será que o Steve Wonder, Rey Charles, José Feliciano, Joaquim Rodrigues só são famosos porque são cegos? Abraços interrogativos do MAQ.

MAQ

Falei especificamente de Stephen Hawking, cujo caso conheço bem, e o citei como exemplo de como a sociedade pinta o deficiente como super-homem, exagera suas realizações. Pelé seria o maior jogador de todos os tempos mesmo se fosse branco, amarelo, vermelho, azul, rosa, etc (risos). Pelo que sei Steve Wonder, Ray Charles e José Feliciano são ou foram considerados grandes músicos, mas não os maiores de seus tempos. E os meios acadêmicos consideram Stephen Hawking um grande físico, mas de jeito nenhum o maior de hoje, e é a mídia que o trata assim – por quê? Se você tiver outra explicação para essa distorção da mídia, gostaria que me desse.

Data: 5 de junho de 2002
Assunto: Uma Breve História do Tempo

[C] Oi Ronaldo, boa noite!

[C] Estou acabando com tua coluna, heim!

[C] Então posso entender que para você ele merece estar na mídia, merece divulgação de suas idéias e estudos, só não em ser o melhor da  atualidade, é isso? Palmas para ele, não é? Mais palmas ainda por ser deficiente e não se limitar a isso, crer em seu ideal e influenciar a cabeça,  pelo menos questionar, a cabeça do mundo. Você se orgulha dele ser deficiente?  Sou tão ignorante com relação a isso que nem sei se é ele ou ela…  ahahahaha! O que me instiga é o tema da deficiência, não a ciência.

MAQ

Já que o que lhe instiga é a deficiência, acho que você deveria se incomodar com a imagem do deficiente vencedor como super-homem – no caso,”o maior físico teórico desde Einstein”–, pois sempre que a transmitem, fica implícito que um deficiente não pode se sobressair em alguma área e ser um ser humano como qualquer outro – note como o preconceito é invertido, não suprimido. Entendeu qual é o cerne da questão?

Data: 19 de junho de 2002
Assunto:Ronaldo

[C] Oi Ronaldo, oi pessoal, boa noite!

[C] Não sei se fiz me entender como deveria.

[C] Uma coisa é eu te valorizar mais como pessoa por saber de suas dificuldades e valorizá-lo pelo que é e pelo modo como encara a vida, outra é um jornal supervalorizar um profissional que seja deficiente com intenção de causar sensacionalismo. O que é real para mim é que nós deficientes temos dificuldades extras em realizar a maioria das tarefas comuns a todos. Uns mais, outros menos. É real também que temos de superar dificuldades maiores ainda no mercado de trabalho para chegarmos a ter crédito e reconhecimento geral e superarmos ou mesmo igualarmo-nos a pessoas sem deficiência no mercado. Sendo assim, os deficientes que se destacam, para mim, conquistaram algo além do que uma pessoa sem deficiência conquistam na mesma profissão, pelo simples fato que têm de ir por caminhos especiais quase sempre mais difíceis que os caminhos comuns a todos. Com isso, Ronaldo, quero distinguir a discriminação que alguns jornalistas se baseiam para criarem sensacionalismo, sensacionalismo que eles mesmos acreditam existir para todos, inclusive nós. Pode ter certeza que o “nosso” cientista teve de escutar coisas desagradáveis a respeito de sua deficiência sendo o destaque que é. Não sei como ele a encara, mas não deve ser tratado naturalmente por dois fatos: ser gênio e deficiente.

[C] Particularmente, Ronaldo, eu torço pelo Brasil mesmo não sendo o melhor… torço por todos nós deficientes porque sei o que se pode enfrentar. Estou acostumado e tudo que faço para mim é normal, cotidiano, mas tem gente que acha uma façanha! Sabe, já foi mesmo, agora é fácil dizer que não é e estranhar que vejam tanta estranheza nisso.

MAQ

Acho que também não me fiz entender direito. Ao menos para mim, há uma diferença entre reconhecer e enaltecer os maiores méritos de uma pessoa com deficiência que tem sucesso em qualquer área, e inventar atributos que ela não tem – se isso não for sensacionalismo, não sei o que é; no caso de Hawking, ele merece ser aplaudido de pé aonde quer que vá por ser um grande físico tendo uma deficiência tão limitante, mas isso é diferente de chamá-lo de “o maior físico teórico desde Einstein”, o que ele não é. É esta segunda atitude que me incomoda.

Mas talvez tenhamos realmente algo de super-homem, afinal, como você disse, com o tempo passamos a ver como normais coisas que geralmente os outros consideram façanhas.

Data: 10 de julho de 2002
Assunto: Ronaldo

Fiquei dez dias sem computador, talvez haja passado do tempo de responder sua mensagem, mas não pude deixá-la passar em branco, já que você parece ter alguma dificuldade de percepção.

[C] Ronaldo, você simplesmente deu um bola fora, não falei só de Hawking mas de muitos deficientes físicos que quebraram as barreiras muito antes da mídia.

<p”>Quem “deu bola fora” foi você, que não entendeu que usei o exemplo de Hawking – o qual você não sabe avaliar porque desconhece a ciência – para mostrar como a mídia pode transmitir, difundir e reproduzir preconceitos – alguns bem sutis – sobre deficientes, enquanto você se contenta com qualquer divulgação que ela nos dá – portanto, minha posição é mais refinada e profunda que a sua.

[C] Estude história, vai em bibliotecas e leia livros sobre irá encontrar.

Não tenho condições de freqüentar bibliotecas – se bem que tenho uma pequena no meu quarto –, mas História é uma das minhas leituras mais freqüentes, embora não tenha muito interesse nos “deficientes” (explicarei o motivo das aspas abaixo) ao longo dela.

Porém, tenho algo que provavelmente você nunca terá – experiência direta com a mídia como fonte de (umas 15) matérias, e não meramente como leitor e expectador: p. ex., uma jornalista de um jornal sensacionalista de Recife, contra o qual eu deveria estar prevenido, me entrevistou pessoalmente durante 90 minutos e depois escreveu que só mexo os olhos e uma perna, não sei se na intenção de causar sensacionalismo ou porque o preconceito de que a PC implica necessariamente imobilidade era tão forte nela que obscureceu o que viu com os próprios olhos; um colunista de um jornal cearense soube de minha história através de uma tia minha, tentou me entrevistar por e-mail mas não conseguiu, porque meu modem estava com defeito ou errou o endereço, essa tia mostrou algumas cartas que recebeu de mim, o cara inventou que tal entrevista existiu e me atribuiu declarações que nunca dei; um repórter da revista Veja fez uma matéria – que a Moni já colocou na Vital – com o pessoal da antiga lista dEficientes de Fábio Becker em que eu, o Guilherme e talvez o Milani formos citados e fez uma declaração minha ter o sentido oposto ao que eu disse só porque não observou que esta tinha um “não” – tal matéria também atribuia a declaração “você nunca encontra um PC num bar” a uma participante daquela lista, o que atraiu minha ira até saber que essa pessoa não falou isso.

Entretanto, creio que nossa diferença é prévia, independe desse contato direto com a mídia: possivelmente tenho um conhecimento maior de Economia do que você tem de Filosofia e uma PC mais limitante que a sua, mas nem por isso me julgo um super-homem – aliás, um tema tipicamente nitzscheano –, como você parece se considerar.

[C] Desculpe, mas muito colegas como você não passaram por mim sem minha opinião, então lá vai.

Quem fala o que quer ouve o que não quer 😉

[C] Argumentos vagos que deixam lagunas não me interessa quero algo em que me basear, os deficientes físicos, como nós, sofrem, sofrem discriminação atrás de discriminação, é questão de administrar nossa condição de entendimento. Você não comentou aquele e-mail porque você não entendeu a minha proposta ou simplesmente, ignorou-a!

Não, apenas achei que era hora de encerrar a discussão e nos contentar em concordar em discordar – depois, voltei ao assunto com MAQ e chegamos a um consenso, o qual talvez realmente não faça sentido para um nitzscheano. Como ninguém além de mim deve ter sabido qual foi “aquele e-mail”, é bom lembrar que nele você disse que sempre houve alguns deficientes que foram imperadores, reis, presidentes, etc, mas que isso não beneficiou o resto porque, entre outros motivos, não havia reconhecimento e mídia para divulgar esse fato. O consenso a que eu e o MAQ chegamos é a distinção entre reconhecimento legítimo – inclusive das maiores dificuldades que um deficiente enfrenta para obter algo – e o sensacionalismo, o exagero e, da minha parte – não sei quanto ao MAQ –, o preconceito sutil, invertido, disfarçado; um primeiro problema com sua posição é, como disse acima, que é a-crítica, não permite ver quando a mídia estar transmitindo, difundindo e reproduzindo preconceitos e discriminação. O segundo pode ser que, ao falar de imperadores, reis, presidentes, etc, que eram “deficientes” você estar ignorando que a clivagem deficientes/eficientes parece haver sido criada em algum momento dos últimos 150 anos, quando a eficiência se tornou – talvez por obra dos economistas – uma das grandes auto-justificações ideológicas do capitalismo e, assim, aquelas importantes personagens não eram vistas como “deficientes” – agora, não me lembro do motivo dos “deficientes” serem jogados num abismo na Grécia Antiga, mas não era por serem não-eficientes; na perspectiva pós-modernista, da qual Nitzsche é uma das bases, não houve uma mera mudança conceitual, literalmente (ou ontologicamente, para usar um termo da filosofia) não existiam “deficientes” noutros tempos e foram criados pelo capitalismo; seja como for, sua visão comete um dos maiores pecados da historiografia – o anacronismo, julgar o passado com critérios do presente. Nesse sentido, se a mídia existisse noutros tempos, talvez falasse de cegos, aleijados, etc, mas não de “deficientes” porque, para a mentalidade daqueles tempos, essa categoria de pessoas não existia.

[C] O deficiente, antes de ter independência, deve ter cortado o nó das amarras de seu próprio intimo, levando-o ao verdadeiro “eu” sem preconceitos. Leia Nietszche e você irá entender onde quero chegar, meu caro!

Meu site está cheio de referências às dificuldades internas dos deficientes e, de vez em quando, na Vital alguém fala desse assunto – portanto, ler Nitzsche é perfeitamente desnecessário nessa questão e, na melhor das hipóteses, ele é só um dos caminhos que levam a isso.

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