Eutanásia e Vida

Data: 15 de dezembro de 2000
Assunto: Eutanásia e Vida
Contexto: Um participante da Vital que tem AIDS ficou escandalizado com uma pesquisa de opinião que mostrava que a maioria das pessoas é favorável à eutanásia e contestei essa posição dele.

[C] Se você tem medo da vida, se você tem medo da morte, se você tem medo da dor, que é passageira, queiramos ou não, eu só posso lamentá-lo.a vida, meu amigo, é o bem mais importante que possuirmos, mas nossa posse sobre ela não é exatamente a posse, no sentido de possuir para destruir, quando nos bem apetecer, tendo como base nos medos pueris de realidades inevitáveis a todos neste mundo.

Logo após o nascimento, passei uma semana ou mais em coma, numa incubadora – minha mãe conta que fiquei todo roxo e inchado de tanta agulhada que levei; durante toda a infância, vivi para morrer de asma; em 1981, uma irmã minha que é física e mentalmente deficiente passou um mês em coma com meningite; sete anos depois, quase morri duas vezes num espaço de seis meses, de afogamento e edema de glote; em 1994, meu pai teve um infarto. Dizer que me falta coordenação motora em tudo talvez seja enganosamente simples: por não poder andar sozinho, em casa me locomovo engatinhando, às vezes com os joelhos e mãos feridos e/ou doloridos; não consigo levar um garfo de comida à boca, preciso que alguém me alimente e até minha deglutição é complicada; sentar no vaso sanitário por minha conta é me arriscar a levar uma queda e morrer de traumatismo craniano; etc, etc, etc. Não é possível dizer que alguém tenha AIDS – que, para mim, é uma ameaça bem presente devido ao tipo de vida sexual que levo e não é uma sentença de morte – pela cara, mas a PC é indisfarçável e, quando entro em qualquer lugar público, os olhares, o preconceito – de ser um débil mental, um monstrinho, um ET –, a discriminação são imediatos; nunca vivi um amor com uma mulher porque a grande maioria delas não sabe lidar com um PC, se assusta, tem medo e até asco, e as poucas que se apaixonaram por mim não tiveram condições para tanto. Devido ao meu contexto familiar e à PC, algumas amigas que conhecem bem ambas as coisas não sabem como não piro; aliás, evitei que duas dessas amigas se suicidassem, sendo que a segunda me deu pouquíssimo tempo para agir – imagine estar com a boca, pés e mãos amarrados e, de repente, saber que alguém que você ama estar para se matar! Apesar de tudo isso, sou alegre, bem-humorado e até brincalhão, embora não o demonstre na Internet.

Não estive em coma numa idade suficiente para isso me marcar nem tive uma doença tão devastadora quanto a AIDS mas, como você pode ver, literalmente desde que saí da barriga da minha mãe tive de lutar pela vida, por um lugar ao sol e até para me expressar, não me falta força, coragem e vontade de viver, como a maioria dos membros da Vital sabe, e ainda salvei ou ajudei a salvar a vida de duas outras pessoas.