Data: 31 de janeiro de 2001
Assunto: Psicologia da Ausência de Fala
Contexto: Anahi Guedes teve surdez profunda mas fala, foi uma das fundadoras da Vital, desde que soube que leio algumas coisas sobre Psicanálise insistia para que eu escrevesse sobre como esta veria a linguagem em surdos e portadores de paralisia cerebral.
Anahi
Ontem, estive com Liliane, conversamos sobre um hipotético livro que eu escreveria, falei que tenho um bloqueio a esse respeito e talvez o superasse se alguém me ajudasse a escrevê-lo, o que naturalmente a fez querer assumir tal papel – por motivos óbvios, ela é a pessoa ideal para isso; aliás, ela tem mais de 200 cartas (em papel mesmo) que escrevi durante e após a terapia que forneceriam material de sobra para um livro.
É muito irônico que a expressão paralisia cerebral haja sido cunhada por Freud e a Psicanálise nunca tenha refletido sobre o assunto, até 1999 – ao menos a autora daquele livro não encontrou nada a respeito. Concluí que minha insatisfação com aquele livro é que focaliza exclusivamente a formação do sujeito em crianças PCs, uma questão da qual estou um tanto distante. Além do mais, o texto sobre psicanálise de surdos tem muitos insights que também se aplicariam à PC, devido à dificuldade de fala em comum. Tomando como base esse texto e minha experiência, a diferença é que não uso uma linguagem específica como a LIBRAS, e sim a língua comum, mas nunca de forma falada, e sim escrita e só ouço o que digo na voz dos outros quando estou conversando com alguém com a prancheta com que me comunico, ao formar cada palavra dou uma pausa em que meu interlocutor deve repetir em voz alta o que eu disse – ou fazer algum gesto, se quisermos evitar que terceiros ouçam – para eu saber se ele me entendeu. O que a Psicanálise pode dizer dessa situação? Não sei pois, embora tenha talento para psicólogo, não o sou e minhas noções de Psicanálise são apenas vagas. De novo, a pessoa ideal para responder é Liliane, tanto por ter sido minha terapeuta quanto por trabalhar baseada na Psicanálise, embora não seja psicanalista. Portanto, se você quiser saber o que a Psicanálise pode dizer a respeito, pegue no pé dela, não no meu!
Mesmo as pessoas mais habilidosas em entenderem o que digo pela prancheta têm dificuldade para entender frases muito longas, o que torna difícil para mim contar uma história, geralmente fica entrecortada e às vezes incompleta, sem muitos detalhes – um meio de remediar tal dificuldade é, quando vou encontrar alguém, escrever previamente uma carta com a(s) história(s) que quero contar para ser lida durante o encontro; é por essa causa que Liliane tem tantas cartas minhas. Não sei bem porquê, também tenho dificuldade em manter uma conversação, isto é, se meu interlocutor não for muito comunicativo e a conversa ficar dependendo de mim, o papo pode morrer – você já deve ter percebido esse problema no ICQ. Quando estou em grupo, é muito complicado poder me expressar porque raramente a disposição espacial do grupo permite que várias pessoas vejam minha prancheta e, de qualquer forma, me é quase impossível acompanhar a dinâmica da comunicação do grupo, isto é, para me expressar tenho de interromper o que o grupo está falando ou chamar a atenção da pessoa que está ao meu lado – e, de certa forma, separá-la do grupo – que, conforme o caso, transmite ao grupo o que eu disse – ambas as atitudes já foram consideradas egocêntricas (tenho algum egocentrismo, mas tais atitudes não o são) –, ou ainda esperar que um assunto se encerre, morra, para emitir minha opinião, o que já me fez ser chamado de “coveiro”; assim, anseio muito por sair em grupo, mas muitas vezes isso acaba sendo frustrante porque, na maior parte do tempo, fico num silêncio forçado. Porém, o mais grave é quando me fazem raiva, injustiça, agressão e coisas do tipo, pois a impossibilidade de falar me impede de responder na hora, inclusive com palavrões: qualquer emoção mais forte aumenta minha descoordenação motora, portanto para usar a prancheta ou escrever uma resposta – supondo que a outra parte esteja disposta a olhar a prancheta ou ler o que escrevo, o que não é nada certo numa briga – preciso controlar minhas emoções, inclusive a agressividade, o que geralmente as faz ficarem entaladas e, em última análise, serem engolidas – não é à toa que tenho aftas e gastrite, ainda mais porque esse represamento ocorre também com minhas tristezas, angústias, preocupações, etc, embora aí a ausência de fala não seja o único fator a operar. Aliás, tal represamento foi o que me levou a precisar de uma terapia num momento em que minha família estava num momento extremamente difícil, pois como não podia dar vazão ao que estava sentindo, não podia explodir, estava implodindo com uma série de problemas psicossomáticos.
Espero que este e-mail lhe ilumine sobre as diferenças e semelhanças entre PC e surdez.