Data 26 de março de 2001
Assunto: Imagem de Anjinho e de Coitadinho
Contexto: Freqüentemente, predomina na Vital mensagens que nada têm a ver com deficiência, não gosto e critico essa “personalidade” da lista e, nesta mensagem, expliquei porque algumas pessoas com deficiência se irritam quando são vistos como anjinhos.
Cris
[C] Com certeza, quando vocês sentem algo diferente ao redor de vocês, deve ser o sentimento parecido com o que senti a maior parte da minha vida quando fui obesa e tive um busto enorme, fora dos padrões e medidas que qualquer adolescente queria e a sociedade e vil e má, começando pelos nossos queridos e endeusados papais, e inclusive eu comecei a me esconder e me largar cada dia mais e sofrer com aquilo.
Por mais limitada que seja, toda pessoa tem alguma responsabilidade pelo seu destino, tem escolha e sua situação depende em parte de sua atitude diante da vida. Porém, muitos problemas da condição de deficiente são bem objetivos, independem da vontade do sujeito as dificuldades de se sair de casa devido às barreiras arquitetônicas; a freqüente impossibilidade de ter uma conta bancária em seu nome por não poder assinar e, assim, às vezes ver seu dinheiro usado por parentes, mais por necessidade e desespero do que por desonestidade da parte destes; não poder viver longe de uma família problemática porque sequer se consegue levar a comida à sua boca; não ter privacidade por precisar que outra pessoa lhe banhe e vista, etc – nada disso pode ser resolvido tomando um remédio, fazendo uma terapia, lendo textos de auto-ajuda (que abomino), e coisas do tipo. Sem dúvida, uma deficiência não é um bicho de sete cabeça, o fim do mundo, mas também seus problemas não podem ser minimizados ou negados – é muito comum não-deficientes argumentarem “todos nós temos deficiências”, o que uma vez foi discutido na Vital e todos que se manifestaram declararam detestar tal argumento (que equivale ao raciocínio “como todos têm medo, todos têm síndrome do pânico”); acho que uma deficiência equivale a qualquer problema grave e permanente como a síndrome do pânico, AIDS, a fome crônica, etc – a gente acaba aprendendo a conviver com ela, até pode crescer como pessoa, mas jamais é algo trivial.
Minha família é tão difícil quanto a sua e eu poderia fazer um relato tão dramático quanto o seu, mas não tenho a menor vontade de fazê-lo. Como você pode ver no meu site e todos daqui podem testemunhar, apesar de tudo isso e ter uma deficiência bastante severa nunca dou uma de “coitadinho”, de vítima da sorte e me irrito quando alguém me acha um sofredor; ao contrário, sou um modelo de racionalidade, lucidez e equilíbrio, e tem muita gente que acha que sou muito duro comigo mesmo – assim, me sinto à vontade para falar deste assunto.
[C] Meu avô querido morreu de leucemia e fui morar com minha avó que teve dois infartos e ela freqüentava muito a igreja do bairro, onde era ministra da eucaristia e lá havia muitos deficientes e até deficientes mentais (não sei a denominação para síndrome de down), e esses tinham um aproximação incrível a mim e um carinho imenso. Depois de tantas e tantas, que não lhes contei a metade, eu sofri muitas e muitas injustiças, doenças, dificuldades e não sou deficiente e nem por isso sou menos sofrida ou mesmo humana ou não os entendo e só porque os chamo de anjinhos (porque chamo a qualquer um que tenho carinho).
Vejamos algumas conotações da palavra “anjinho” assexuado, santinho, infantil, bobinho, super-ingênuo; talvez – o que pode ser absurdo – se possa chamar assim alguns deficientes mentais, o que explica porque os portadores de PC se sintam ofendidos ao serem chamados dessa forma, pois o nosso maior estigma é sermos confundidos com esse tipo de pessoa. O fato é que alguns tipos de deficientes são considerados anjinhos, em particular os que o são desde o nascimento. Embora tenha se convertido ao Espiritismo há vinte anos, minha mãe tem a típica mentalidade católica apostólica romana, antes dessa conversão às vezes tinha vontade que eu fosse padre e sente-se na obrigação de zelar pela salvação – ou pelo “progresso espiritual”, na terminologia espírita – dos filhos, mesmo que seja forçando-os a algo e, quando fui começar minha vida sexual, o fiz em segredo porque temia que ela fizesse um escândalo ou simplesmente me prendesse em casa; anos depois, quando fiz amigos que saíssem comigo, ela passou anos ameaçando fazer tal coisa porque, entre outras coisas, não queria que eu botasse uma gota de álcool na boca, etc. Na mesma época, quando uma amiga saiu comigo para um bar pela primeira vez, uma mulher que estava numa mesa próxima ficou histérica e quis chamar a polícia pois, ao me dá cerveja, essa amiga estava pervertendo um anjo! Episódios desse tipo são bem comuns e, há dois meses, Camila relatou um que aconteceu na instituição onde trabalha, em que dois PCs se apaixonaram e queriam namorar mas, quando souberam, os funcionários e os pais armaram um escândalo e os separaram sem a menor consideração pelo que os dois sentiam – mas tudo muito lógico, pois anjinhos não podem se apaixonar, ter desejos e transar. Portanto, tal imagem não é inócua nem benévola, sendo muitas vezes motivo de repressão, opressão e arbitrariedade. Porém, o mais profundo e grave é que chamar um deficiente de “anjinho” é um modo de negar sua condição humana, pois anjos não são seres humanos falíveis, cheios de defeitos (e virtudes), que têm sexualidade e desejos, que erram (e acertam), etc – e o que os deficientes mais querem é serem considerados pessoas comuns, nem mais nem menos. Portanto, não estranhe quando um deficiente se irritar se você o chamar de “anjinho”.
[C] E quanto as mensagens de auto ajuda, fotos, e tal, é justamente para igualar a meus amigos, que mando e quem recebe em particular sabe o quanto mando sempre algo que acho tocante, divertido, inusitado, de bom tom, e até para diversão, passa tempo, ou seja, vocês não são menos meus amigos que os outros porque só coitadinhos! Coitadinhos? Coitadinha de mim que não faço e não sei metade que vocês, e tenho tudo e me acho a coitada e a sofredora, ah vocês são felizes e não sabem!
Eu e o Eduardo Camara reclamamos da Vital, não especificamente de você. Uma lista de discussão é um espaço para debater um assunto específico e temas correlatos, embora toda lista tenha algum OFF-TOPIC, mensagens pessoais, gracejos, amabilidades, etc, quando tais coisas se tornam freqüentes o pessoal cai em cima em dois tempos a não ser que o objetivo da lista seja este e, se a situação não mudar, muitas vezes a lista se acaba. Até onde sei, o Milani e a Anahi criaram a Vital para discutir temas relativos à deficiência, mas isso é o que menos há aqui, existindo uma grande quantidade de lições de moral, textos de auto-ajuda, e-mails que deveriam ser pvt, de mensagens de uma ou duas linhas totalmente sem relevância, de fotos, etc – e isso é porque a coisa já melhorou, pois já houve poeminhas e gifs. Por outro lado, raramente há divergências de opiniões e choques de idéias – e quando há, muitas vezes alguém parte para ofensas pessoais –, críticas abertas e, quando alguém tem um discurso mais direto e forte, muita gente fica suscetível, tem a sensibilidade ferida, parecendo ser feita de vidro! Para mim, essa personalidade da Vital se sobressai pelo contraste com outra lista de que participo, em que polêmicas são comuns, há criticas abertas e até duras, muita ironia, raramente ocorre ofensas pessoais e, quando se reclama do excesso de OFF-TOPIC, ninguém fica melindrado – enquanto que aqui meu discurso causa estupor, choca, lá é corriqueiro. Por que a Vital é assim? Na minha humilde opinião, as causas são uma grande carência afetiva da parte de muitos deficientes e boa parte deles e das pessoas que simpatizam com eles introjetou o pieguismo e a imagem de “coitadinho” com que são tratados – e repito que estou me referindo à Vital, não a você.
Uso o computador numa posição que causa problemas musculares e na coluna, inibe minha respiração, e minha digitação é muito lenta – portanto, tenho mais que fazer do que ficar lendo auto-ajuda, lições de moral, etc, coisas que, aliás, acho abomináveis; e aqui tem gente com mais dificuldades que eu no uso do computador. Entrei na Vital para trocar informações sobre deficiências, raramente procuro suprir minhas carências afetivas na Internet e, quando o faço, é pelo ICQ, bate-papo ou e-mails pvt, pois uma lista de discussão não é lugar para isso – mas a Vital é mais um grupo de apoio mútuo, um bar virtual!
Data: 30 de março de 2001
Assunto: Ronaldo e os nossos discursos
Mirela
[C] Eu compreendi quase tudo o que você disse. Não entendo porque você acha que contamos nossas historias na posição de heróis ou coitadinhos.
Não é sempre que isso acontece nem todos o fazem – p. ex., você nunca assume essa atitude. Porém, pelas razões já apontadas, há muito disso na Vital.
[C] Querendo ou não VOCÊ pode ser visto por alguém como herói, acho que até mesmo aqui na lista você já percebeu as vezes que te vêem assim e isso te irrita, o mesmo se você for visto como coitadinho.
De fato, tenho consciência de que sou uma pessoa extraordinária – “herói” é totalmente despropositado – mas convivo mal com isso, me incomoda bastante, e é difícil explicar porquê. Como já disse uma vez ao MAQ, não alcancei, ao menos ainda, meus grandes objetivos de vida, o que faz com que me sinta “fracassado”, coisa que não combina nada com a aura que transmito. Além do mais, ao menos em grande parte, minhas conquistas são mera questão de sobrevivência, pois não tive muita escolha entre ser assim e vegetar – tanto é assim que é comum encontrar exemplos de vida entre portadores de deficiência. Por outro lado, muitas vezes essa aura não é uma supressão, e sim uma inversão do preconceito decorrente da surpresa de se deparar com um ser pensante como qualquer pessoa onde se esperava encontrar alguém sub-humano. Por fim, a carga de preconceito – inclusive dos pais – que existe em torno dos PCs afeta muito a auto-imagem deles e a gente fica bastante inseguro quanto aos próprios méritos e virtudes, o que não é fácil de se superar.